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Ensaio sobre o desterro

No silêncio caótico desse cultivo inconsciente de palavras, transporto-me para aquelas ruas pobres e negras – cenário de desalento. Que pungentes cenas estariam protagonizando agora os arlequins de tristes figuras?

Antes de pegar o metrô rumo à estação Luz, li em redes sociais mensagens que desqualificavam os organizadores e participantes do “Churrascão da gente diferenciada – versão Cracolândia” por eles supostamente nem saberem ao certo onde fica a região que tem sido alvo de perversa operação policial, este braço do Estado – e não custa insistir: de evidente motivação higienista. Saindo da estação, me dei conta, vejam só, de que realmente não sabia como chegar à rua Helvétia, local da ação. Acostumada a errar pela cidade, pedi orientação a um taxista. “Ah, agora dá pra andar por ali, né?”, ele disse. E esbocei um sorriso sem jeito.

No caminho indicado, encontrei um rapaz e uma moça, cada um carregando um engradado de cerveja, igualmente perdidos. Eles, atuantes em prol dos direitos da criança e do adolescente em ONGs da região do Capão Redondo e de Interlagos, zona sul da cidade, e eu fomos orientadas por uma jovem que depois me contou estar trabalhando junto à Defensoria Pública, em exercício de escuta, registro e encaminhamento dos relatos de usuários de crack e moradores do entorno sobre, por exemplo, abusos cometidos por policiais. E enfim, chegamos.

As primeiras imagens gravadas na memória dão conta de pequenas aglomerações margeadas, de um lado, por velhos sobrados, com suas paredes gastas e pálidas e onde algumas pessoas assistiam à movimentação da janela do piso superior, e de outro, por um sem-número de cartazes colados em um cercado de arame. Neles, pude ler depois, dizeres em tintas coloridas: “o usuário deve ser tratado e não maltratado”, “limpar não é tratar”, “contra a política de higienização”, “usuário não é droga nem lixo!”. Avistei, no centro da rua, o padre Júlio Lancelotti e, mais à frente, uma barraquinha onde moradores da região formavam uma pequena fila para receber lanches com carne preparada na hora. Havia ainda os que faziam música, executada por um grupo que se abrigava em uma tenda improvisada, rodeada de muitos curiosos, o que impedia uma visão mais clara do que acontecia ali – guardo partes fragmentadas de instrumentos e de corpos em alegria de gestos. Todo um público, atravessado pela diferença de classe, que se olhava e se estranhava – e estranhava a si, imagino. Uma distinção clara de origem: gente da região e gente de fora – este último grupo que se vestia mais ou menos como eu.

Garota bastante expansiva, aos sorrisos, distribuía sua última invenção aos presentes, cantando “Ai, polícia, se você me pega/Assim você me mata”, em paródia que arrancou, ainda que à força, algum movimento de lábios.

E o que era garoa virou chuva grossa e, assim, espocaram os guarda-chuvas abertos – alguém pedia acolhida embaixo de um, outros se protegiam na barraca e houve os que preferiram caminhar sossegados, deixando-se encharcar tranquilamente.

Logo sou levada ao chamado “buraco”, sobre o qual apenas havia lido em textos que circulavam na Internet. O impacto é grande. Uma construção de dois andares absolutamente deteriorada, repleta de escombros, composta por pequenos “cômodos” destroçados e com o aspecto pós-guerra deixado pela invasão policial. No chão, misturados às pedras de concreto, pedaços de vidro, tecidos e objetos pouco identificáveis, que tendem a ser lidos pelos nossos olhos como sujeira ou lixo. Tudo úmido e revirado. Como se estivesse num museu de horrores, monumento em memória a uma dessas catástrofes que povoam a história – e que não costumam ser contadas do ponto de vista de seus vencidos –, observo a tudo espantada, cultivando certo silêncio. Há ainda outros visitantes estrangeiros, máquina fotográfica nas mãos ou pendurada no pescoço, a perscrutar o local, e um cheiro que não consigo discernir. Limito-me a permanecer em um dos primeiros espaços do comprido terreno e recuo, resolvo abandoná-lo – eu também. Na saída, ouço lá de dentro um rapaz pedir a outro: “tira uma foto minha?”.

Já do lado de fora, estou acompanhada por um grupo bem maior de pessoas. O número de presentes aumentou ou não havia me dado conta da quantidade de gente que resolveu se deslocar de suas casas, muitas em regiões bem distantes, para olhar de perto uma das tragédias que ajudamos a criar? Minha percepção é só embotamento. É quando uma voz, do andar de cima do prédio, espanta estas tentativas de elaborar a experiência. Grito de dor e sofrimento. Homem de longos dreads, empunhando bandeira do Brasil, cuja imagem foi veiculada em diversos espaços virtuais, proferia virulento discurso. Ao final, sacou a bandeira e disparou: propôs que cantássemos o hino nacional. Alguns de imediato apoiaram a idéia, mas o tímido canto foi logo abafado pelo burburinho e por discursos outros, igualmente inflamados, guturais. Em meio ao passa-passa de gente, flashs de câmeras fotográficas e encontros de conversas, um senhor mostra a todos um cartaz de papelão: “ACORDA SÃO PAULO”. E eu também o enquadro em uma imagem digital.

Mal percebo que o então orador deixou seu posto e, no lugar, está um “fora Kassab”, oportunamente pichado por um garoto que havia se empoleirado em uma das janelas do casarão. E oportunidade parece ser palavra adequada para o que depois vi.

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(foto amadora ao paroxismo, tirada de celular gentilmente emprestado, com dedo aparecendo e tudo)

Hesito em levar adiante a escrita. Parece ato mesquinho em se tratando de situação tão delicada em suas feições de colapso social. No entanto, permanece o desejo de construção coletiva de “debate” (e talvez seja só mais um chavão inconsciente), o que acaba por vencer minha vergonha. Escrevo assim o primeiro texto deste espaço mais especificamente voltado ao que, aqui, tendemos a pensar como “teatralidade de rua” (!). Não se trata de uma tentativa de reduzir a ocupação e a ressignificação do espaço público por mulheres e homens à dimensão estética (ou esvaziando-as em chave esteticizante), mas, ao contrário, expandir a leitura destas ações, entendendo estética de forma indissociável de ética, e também de historicidade e politicidade.

A manifestante-performer da imagem movia a sua placa no sentido da seta, lembrando um orientador de trânsito. Irmanando-se a esta postura de ironia mordaz, dolorida, um rapaz ostentava outra placa, também pendurada ao pescoço, onde se lia “Visite o bairro decorado”, em referência às relações entre a Prefeitura e a especulação imobiliária – uma discussão sobre o processo de gentrificação da Luz pode ser encontrada neste vídeo: http://vimeo.com/32513151. O sarcasmo encontra outros sentidos na condição de visitante de boa parte das pessoas da classe média paulistana que nem ao menos sabia a localização exata daquele lugar da cidade estigmatizado como “Cracolândia”. Não à tôa, ao lado do “buraco”, um picho incitava um riso amargo: “Welcome to City Cracko” (e embaixo, “CACHIMBO CHEIO”). Desterritorializados estamos todos.

Daniela Landin